(Atenção, caros leitores: spoilers na newsletter de hoje. Prossigam com cautela!)
Por um breve momento, não sou nada. Apenas um corpo, uma respiração, uma consciência trémula. Depois, lentamente, o “eu” começa a ganhar forma: um nome, responsabilidades, memórias – a versão de mim mesma com a qual escolho começar o dia e entrar no mundo. Pergunto-me então qual “eu” sou eu: a pessoa que está a escrever, ou a que cria a performance para que seja lida? Sou a versão que existe offline, confusa e indigna, ou a versão cuidadosamente articulada, merecedora, filtrada e apresentada online? E se pudesse dividir-me, livrando-me dos momentos que mais abomino, submeter-me a um procedimento à la Severance, ou libertar-me da minha versão mais fraca e imperfeita, como em The Substance, seria capaz?
Há uma razão pela qual as histórias mais assustadoras são muitas vezes as que não falam de monstros, mas de nós mesmos. O que mais tememos não são as ameaças externas, mas as fracturas internas: a possibilidade de não sermos tão únicos ou inteiros como imaginávamos. Que, nas condições certas, nos podemos tornar irreconhecíveis. Perder o fio à meada. Mas é igualmente assustador pensar nas mil e uma maneiras em que nos dividimos, no que já fazemos para conquistar essa divisão. Não se trata apenas das feridas que os outros e o mundo nos causam, mas daquelas que criamos, auto-infligidas, como se a cada corte e ferida estivéssemos mais próximos de um sentido de perfeição.
Tornámo-nos especialistas na arte da auto-divisão, em alimentar diferentes versões de quem somos de acordo com os devidos cenários, audiências e necessidades. É claro que a performance social sempre fez parte da experiência humana. No livro A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dia, o sociólogo Erving Goffman inspira-se na peça de William Shakespeare, As You Like It, para interpretar a interacção social como um palco onde desempenhamos diferentes papéis conforme o contexto. Goffman argumenta que, uma vez definido o que está em jogo numa interação, cada pessoa gere a apresentação de si mesma em função da audiência e das expectativas previamente estabelecidas.
A questão é que o tecido com o qual se tece o mundo de hoje, a velocidade com que tudo acontece, parece ter elevado o potencial da fragmentação a novos patamares. Hoje, os palcos e as audiências são infinitas. E nós, diligentes artistas, fazemos o possível para encarnar diferentes personagens consoante o que se nos é pedido. Ossos do ofício, dizem. A tragédia parece-me óbvia: quanto maior o número de máscaras, maior a divisão – menor o que resta. Quanto mais tentamos ser tudo para todos, menos somos para nós próprios. E à medida que o conflito entre o eu “autêntico” e o eu “aspiracional” cresce, também o nosso fascínio pela representação dessa dualidade se intensifica. Não é por acaso que duas das obras mais faladas da ficção contemporânea, Severance (2022) e The Substance (2024), explorem justamente o dilema filosófico em fragmentar a identidade através da criação de uma outra consciência e/ou corpo.
Em Severance, os personagens submetem-se de forma voluntária a um procedimento que divide a sua consciência em duas: uma que existe apenas no trabalho (innie) e outra que vive fora do escritório, no mundo exterior (outie), sem que em teoria as suas memórias se sobreponham. Em The Substance, acompanhamos a vida de Elisabeth, que decide tomar uma droga experimental que a divide em dois corpos: um jovem e bonito, que experiencia prazer e sucesso, e outro, o de origem, envelhecido e renegado, que parece existir num limbo, inútil e invisível, aguardando a sua semana para voltar a viver. Ambas as histórias giram em torno da mesma questão: e se pudéssemos escapar às partes da vida que nos causam maior sofrimento?
Severance torna isso literal: os innies e os outies são duas pessoas distintas. O innie trabalha; o outie vive. Mas embora partilhem o mesmo corpo, as suas prioridades vão mudando ao longo do tempo. O que acontece, no decorrer da história é uma negociação cada vez mais tensa e intricada entre consciências. Por outro lado, The Substance adopta uma abordagem mais visceral onde Elisabeth, ao injectar-se com um líquido verde "shrekiano", dá vida a Sue, uma versão alternativa e ideal de si mesma. Neste caso, Elisabeth e Sue são, na verdade, a mesma pessoa, uma vez que partilham as mesmas memórias. Ainda que o filme não seja totalmente claro neste ponto, talvez propositadamente, parece-me que os dois corpos partilham uma única consciência e o que é insidioso é percebermos que Elisabeth, ao odiar o seu aspecto actual, no corpo de Sue, deseja ainda com mais desespero apagar a versão original, odiando-se ainda mais por isso. Trata-se de um ressentimento constante, um conflito interno, onde a luta acontece exclusivamente na mente da protagonista.
Esta distinção serve, naturalmente, o propósito central de cada uma das obras: Severance lida com a perda da identidade, da memória e do individualismo do trabalhador numa sociedade capitalista, enquanto The Substance explora o paradoxo do envelhecimento, a democratização da cirurgia plástica e o culto da imagem. Ainda assim, apesar das diferenças nas perspectivas sobre o que significa ser uma pessoa dividida, tanto a série como o filme usam essa fragmentação da identidade como dispositivo para ilustrar, de modo distópico e hiper-estilizado, algo que já ocorre subtilmente e que pode vir a acontecer de forma ainda mais acentuada.
Mas então, o que é este “eu”? Talvez não seja algo estável ou imutável, mas uma negociação constante entre memória, personalidade, valores morais e percepções sociais. E o que é que acontece quando alguns destes elementos entram em conflito? É neste vazio ontológico que se inserem as duas obras que exploram a fragmentação da identidade, um mundo onde o Eu pode ser desmembrado, duplicado ou reconstruído. Se a divisão é possível, o que nos define realmente e o que fica quando nos separamos?
Severance explora um mundo onde a divisão entre trabalho e vida pessoal é absoluta. Em teoria, é uma premissa tentadora. Quem não gostaria de esquecer as horas no trabalho, especialmente quando se está de luto, deprimido ou de coração partido? Digo trabalho, mas há quem diga ginásio. A série relembra as consequências dessa possibilidade: ao bifurcar a consciência, o innie fica preso num ciclo interminável de trabalho, enquanto o outie, totalmente alheado, segue com a sua vida, sem qualquer responsabilidade sobre esse outro “eu”. Abstendo-me de fazer spoilers, a série vai mais longe e por isso se torna tão interessante, isto é, além de apresentar as consequências, coloca dilemas tanto para os innies como para os seu outies, levando-os em busca de respostas para a sua condição.
Em The Substance, a fragmentação não acontece de forma corporativa, mas de forma estética: a divisão entre juventude e velhice, desejo e invisibilidade. A protagonista, Elisabeth, percebe que a sua versão mais jovem, Sue, é recompensada com atenção e adoração, enquanto a mais velha é esquecida e descartada. O medo não está na premissa, mas na sua verdade: vivemos num mundo onde o corpo é mercadoria, onde envelhecer é visto como falha pessoal, onde o “eu” nunca é suficiente. Se houvesse um botão para nos tornarmos na versão ideal, não o pressionaríamos todos? O que raramente consideramos é o custo. The Substance expõe, de forma grotesca, o que acontece quando a versão ideal abusa da ilusão e tenta destruir a matriz, a versão autêntica. Severance lembra-nos que a separação não significa escapar, mas transferir a dor para uma outra parte de nós que terá de a suportar.
Podemos muito bem argumentar que nos estamos a tornar como as personagens destas histórias. E é, bem sei, evidentemente cliché associar esta inclinação para nos entusiasmarmos com a ideia da fragmentação de identidade à ubiquidade das redes sociais. Mas é também inegável que a nossa realidade se divide, cada vez mais, entre uma existência física e outra digital. A world wide web democratizou a ideia de uma identidade fragmentada. O que mostramos nas redes sociais não é o mesmo quando estamos na fila do supermercado, no sofá às duas da manhã ou num momento de desespero silencioso. Aliás, até entre redes sociais a nossa máscara muda: a do instagram não é a mesma que a do twitter. Online, apresentamo-nos como versões polidas, seguras, ambiciosas, aspiracionais e engraçadas. Offline, esse brilho desaparece: cometemos erros, sentimos vergonha, envelhecemos, somos inseguros, nem sempre temos graça. Qual dessas versões é mais real? E, no fim, qual importa mais?
O capitalismo, como seria de esperar, tem uma preferência clara. Quanto mais fragmentados nos sentimos, mais maleáveis nos tornamos à venda de uma suposta solução. A sua lógica prospera na divisão: entre o corpo que temos e o que desejamos, entre trabalho e lazer, dever e desejo, realidade e performance. E, portanto, o capitalismo não só despreza o silêncio e o vazio como não quer um eu coerente e totalmente satisfeito. Não há mercado para a satisfação. Uma pessoa que se sente completa não é lucrativa. Por isso mesmo, somos tratados como projectos inacabados, insuficientes, eternamente à procura de melhoria. Há sempre uma versão melhor à qual devemos aspirar, um novo ritual a adoptar, um novo padrão de beleza a perseguir. Se estamos cansados, dizem que não estamos a ser eficientes. Se estamos infelizes, dizem que não estamos a optimizar o dia. O sistema nunca falha connosco; nós é que falhamos dentro dele.
Em 1800, Karl Marx falava sobre a alienação do trabalho, argumentando que, sob o capitalismo, o trabalhador acaba por se tornar produto do próprio trabalho, do processo e, em última instância, de si mesmo. Hoje, porém, essa alienação não é apenas económica, mas também existencial. Estamos alienados das nossas próprias imagens, dos nossos próprios reflexos. Se pensarmos bem, também os padrões de beleza se tornaram num sistema de trabalho, que exige manutenção, disciplina e sacrifício. O corpo tornado produto, sempre disponível a sofrer em nome do ideal que está na moda. No ensaio Modos de Ver, John Berger desenvolveu, a ideia de que, ao longo do tempo, a mulher foi colocada num papel simultâneo de “escrutinadora” e “escrutinada”, treinada para se ver como o mundo a vê. As redes sociais tornaram esse exercício universal. E, nesse sentido, transformaram-nos ainda, homens e mulheres, na própria audiência: criamos, editamos e retocamos à mercê de um público que tanto desejamos quanto tememos. Fingimos que é uma escolha livre, mas será?
Se o panóptico foi, em tempos, uma metáfora para a vigilância estatal, hoje é uma descrição precisa da nossa condição. Somos observados, mas, mais do que isso, tornámo-nos auto-vigilantes. Somos vítimas e responsáveis no panóptico digital porque participamos activamente na construção desses mesmos sistemas de vigilância. Byung-Chul Han fala sobre isso nos livros A Sociedade do Cansaço e A Sociedade da Transparência. Em tempos, acreditámos que o espaço da comunicação era um espaço de liberdade. Mas, numa sociedade que explora essa liberdade ao máximo, o espaço para ser livre transforma-se num espaço de controlo. A auto-vigilância assegura que cada um de nós aplique voluntariamente um olhar panóptico sobre a própria vida.
De acordo com Han, e ao contrário de uma análise foucaultiana, a disciplina já não vem de cima, imposta por uma autoridade distante; tornou-se um mecanismo interno, auto-regulado, assimilado sem resistência. Não precisamos de um opressor externo quando nos tornamos participantes voluntários num sistema de controlo. A auto-exploração é hiper-eficiente porque traz consigo a ilusão de uma certa liberdade.
A questão, então, é saber se fazemos tudo isto de forma consciente e por prazer, ou meramente por sobrevivência. Acredito, evidentemente, na última opção. Com toda esta divisão e existência fragmentada, estaremos a criar uma versão melhor de nós mesmos ou apenas uma versão mais fácil de aceitar, validar e monetizar? Se a beleza, a alienação do sofrimento, a juventude e o desejo são a moeda, quem pode dar-se ao luxo de ser real?
A tragédia de The Substance é que a versão autêntica de Elisabeth esteve sempre à espera para retomar o controlo, para impedir que a versão ideal a destruísse. Curiosamente, o momento em que a personagem se sente mais em paz é no final do filme, na sua versão monstruosa. Não apenas em paz. Livre. A tragédia de Severance é que nem o innie nem o outie podem ser inteiros, que o sofrimento é inevitável – mesmo não tendo memória dele, os seus corpos registam a dor, guardam-na para si, só não sabem o que é – e que a negociação entre as duas partes nunca será possível (ou talvez possa, mas não revelo mais detalhes. Vejam a série!). A nossa tragédia? Bem, é que estamos a viver estas histórias todos os dias, muitas vezes sem sequer nos apercebermos.
Escrevo como uma versão de mim, mas partilho com outra. Essa versão aguardará com paciência pela validação, pelo alcance, pela prova de que existe e importa. A versão de mim que está apenas aqui, sozinha e em silêncio, desaparecerá assim que fechar o computador.
Quem sou eu quando ninguém está a ver? E, se essa versão é a mais real, porque passo tanto tempo a tentar fugir dela?
Nem de propósito, descobri a artista americana Gertrude Abercrombie através de um artigo da Vogue, The Emotionally Charged Paintings of Gertrude Abercrombie Finally Find Their Audience.
Literalism Plaguing Today's Biggest Movies. De acordo com Namwali Serpell, muitos dos filmes que temos visto hoje em dia partilham do mesmo estilo. O Novo Literalismo é, segundo a autora, caracterizado pela repetição exagerada do óbvio, o que torna a obra artística violenta ao simplificar excessivamente as suas mensagens. Filmes como Anora, The Substance e Emilia Pérez padecem do mesmo mal. Segundo Serpell, este novo estilo tem levado à crescente e perigosa expectativa de um significado único e claro na arte. Achei o artigo curioso, aqui fica.
I know a reference when I see one. O novo single das HAIM chega esta quarta-feira. Intitulado Relationships, a capa parece recriar a fotografia (que se tornou meme) de Nicole Kidman captada em 2001, no momento em que supostamente oficializou o divórcio com Tom Cruise. Apesar da actriz já o ter negado, o meme permanece e continua a servir de inspiração.
Este artigo da GQ, Gene Hackman’s Movie Clothes Never Felt Like a Costume. “In his era, Hackman wasn’t the sort of guy held up as a personification of masculinity, like Burt Reynolds or Clint Eastwood; nor was he the type of man that most women swooned over, like Steve McQueen or Robert Redford. He was just a dude—and he excelled at dressing like one.”
Notas de março.
Eu, em março, à procura do sol no meio dos dias cinzentos e chuvosos.
O meu algoritmo não me desilude: The Real Reason Modern Work Is So Soul Crushing, Explained.
O single do novo álbum do Perfume Genius.
Um arco-íris.
Este tweet.
Pago Substack para ler reflexōes como esta.
Uau! Parabéns. Sobre esta reflexão, acresce também o impacto da inteligência artificial e do uso do ChatGPT nas nossas vidas, da consequente síndrome do impostor e da erosão da nossa autenticidade... A lenha perfeita para a fogueira dos tempos que vivemos.