Há uma casa dentro de mim. Há anos que ocupa os corredores da minha memória, como uma sombra silenciosa que me recorda que já fui feliz. Não me interpretem mal — a felicidade continua a existir na minha vida, em tantas coisas e pessoas, em tantos cheiros, sons, sabores e prazeres. A outra versão de mim é que não existe. E, às vezes, penso nela. Em mim antes da vida. Em mim antes de tudo. Se a pudesse voltar a ver, adolescente — certamente mais ingénua e sensível, maleável e colorida como plasticina — não sei o que lhe diria. Talvez a olhasse com um misto de ternura e estranheza, entre o orgulho e a melancolia. Ou talvez, ao invés disso, a invejasse com um toque de desprezo, como quem contempla ao longe uma liberdade, despreocupação e leveza que já não existe. Porque essa versão de mim via um mundo maior, ainda intacto, onde tudo era possível.
A verdade é que essa versão vive ainda na promessa de um futuro, certa de que tudo lhe pertence. E eu, que conheço o peso das horas, jamais teria coragem de lhe quebrar o encanto e dizer que estará sempre a meio de qualquer coisa que poderia ter sido, mas não foi. Que o tempo não estica como parecia prometer, que os caminhos se estreitam, que há portas que nunca se abrem e outras que se fecham antes mesmo de termos oportunidade de espreitar para dentro. Mas há uma casa dentro de mim. E ali, naquele espaço intocado, ela resiste. No gesto mais banal, na cena mais corriqueira, a viver o que eu não vivi. Como se o passado tivesse encontrado forma de resistir, imune à erosão dos dias. Nessa casa, os objectos não envelhecem, a madeira não apodrece, as conversas não se perdem, a ideia de família persiste, os sonhos não perdem a cor.
É sempre uma relação difícil, esta de encarar o passado. Mas se o faço, é porque preciso — não sei viver de outra maneira. Parece-me inevitável. Como se a memória tivesse um íman, um campo invisível que me puxa para fora da possibilidade do presente. E é isso que me interessa. Diz-se muitas vezes que olhar para o passado é inútil, qual peso morto, que é desperdício, que o que passou, passou, que só o presente importa. Mas quem disse que a memória não é também uma forma de existir? Quem disse que o passado não respira, que não se insinua nas pequenas coisas, que não nos acompanha em silêncio e nos molda, mesmo quando julgamos tê-lo deixado para trás? Há algo na recordação que me atrai — uma ilusão teimosa em recuperar o brilho de outrora, em conter o tempo entre os dedos, como se possível fosse encaixar fragmentos de vida em pequenas estrelas. Formar uma constelação, inscrevê-la no céu e fazer disso um ritual de contemplação. Não olho para trás com um saudosismo estéril, olho na tentativa de compreender.
Vejam bem, esta minha insistência é real. Esta casa não esteve sempre dentro de mim — também existiu. Foi chão e parede, telhado e janelas. Foi o lugar onde cresci, um espaço sagrado numa fase em que ainda estava a aprender a ser, a testar os limites do mundo e onde cada divisão servia de espelho e me dizia quem era antes mesmo de o saber. Um dia deixei de caber nela, ou ela em mim. Foi-me arrancada antes que pudesse dizer adeus. Mas o que fica quando perdemos o lugar que nos diz o que somos? O que resta senão aceitar que aquelas paredes já não me pertencem, que o quarto já não protege, que a sala já não ensina, que o quintal já não diverte, que a cozinha já não ferve?
Mas a casa resiste, incólume, na lembrança. E talvez isso seja o mais cruel — quando um lugar deixa de existir no mundo e passa a existir apenas dentro de nós, frágil e inatingível, uma imagem que não podemos apagar, um fantasma que se recusa a desaparecer, mas que não podemos controlar.
Tudo o que vos escrevo não é novidade. Outros, antes de mim, passaram por circunstâncias semelhantes, ou piores. A casa que perdi não foi a guerra que a levou nem a terra que a destruiu, mas os infortúnios de um homem dominado pelo vício, pelo medo e também pelo capricho. Recordo-a muitas vezes, e se no início me causava tristeza, vergonha e frustração, hoje olho para ela como uma figura monolítica.
Já não é a casa que perdi; é um símbolo que adquiriu uma dimensão além do espaço que ocupou na minha vida. Tornou-se algo intransponível, não apenas um refúgio ou um lugar de memórias, mas, de forma mais ampla, sinal de um progresso inevitável. Como um monólito, esta casa representa algo mais profundo, algo que permanece, sólido e imutável, apesar do tempo — o monólito está para a casa como a vida está para mim: um ciclo contínuo de destruição, construção e reconstrução. Passou a ser a expressão do que procuro, do que já fui e, talvez, do que posso ainda vir a ser. Monolítica não apenas pela sua substância, mas pela carga simbólica que carrega, permanecendo diante do tempo como um símbolo de pathos: da dor e do prazer, da perda e do reencontro, da fragilidade e da força.
Em 2001: Odisseia no Espaço, Kubrick utiliza o monólito como símbolo de evolução, uma força que conduz o ser humano em direcção ao desconhecido, ao grande mistério do cosmos. Então, a casa que tenho dentro de mim, na memória, deveria também ser esse objecto estranho e místico: uma presença silenciosa, mas decisiva, que me obrigou a mudar, a sofrer, a enfrentar o desconhecido e a transformar. E continua presente, julgo eu, por ser essa promessa de continuidade, de algo maior que transcende o espaço físico e se inscreveu em mim, na minha família, na nossa história. Tornou-me mais humilde e fez com que percebesse desde muito cedo como amar no meio do ódio, sorrir no meio das lágrimas, ter calma no meio do caos e descobrir, também dentro de mim, o verão invencível no meio do inverno de que falava Camus.
É curioso perceber que, em entrevista ao crítico de cinema Joseph Gelmis, em 1969, Kubrick menciona o monólito e evoca-o enquanto espécie de arquétipo junguiano. E comecei a pensar. Na sua psicologia, Jung vê a casa como o arquétipo do Eu — um espaço que contém todos os aspectos do nosso inconsciente, com portas que se abrem e se fecham à medida em que nos vamos conhecendo.
“Thus, the house might be viewed as both an avowal of the self — that is, the psychic messages are moving from self to the objective symbol of self — and as a revelation of the nature of self; that is, the messages are moving from objective symbol back to the self. It is almost as if the house-self continuum could be thought of as both the negative and positive of a film, simultaneously.”
A casa, tal como a teoria de Jung sugere, torna-se na representação desse movimento constante entre o Eu e os seus símbolos, entre aquilo que somos e o que nos é revelado. E sempre que a relembro — a cada divisão, janela ou canto escondido — é como se as portas do inconsciente se abrissem e fechassem, qual espaço liminar, onde as diferentes versões de mim se cruzam, se confrontam e, eventualmente, se reconhecem. Um diálogo de quinze anos com um lugar onde não voltarei a entrar. E ainda assim a conversa sobrevive.
Não estivesse a casa da minha avó ao lado da casa que perdi, e esta memória já valeria por si. Quando regresso à aldeia para matar saudades da família, encontro-me também com essa casa, que, hoje, se tornou símbolo. Ela permanece, não como um lugar perdido e de saudade, mas como um lugar de continuidade. Resiste ao tempo e ao desgaste, com uma presença que, embora constante, me desafia a recordar o passado e a imaginar o futuro.
Agora que escrevo, compreendo. Já não a vejo como um peso, pecado ou vergonha, mas como uma força que me empurra para dentro e para fora de mim — os espaços que realmente importam. Há uma casa dentro de mim que não é apenas objecto ou memória distante, mas a lembrança de tudo aquilo que fiz para aqui chegar e do tanto que ainda tenho por descobrir.
Tenham uma óptima semana,
Marta
Origin and Purpose Still a Total Mystery. Fui parar a este artigo na JSTOR e descobri que uma das grandes inspirações de Kubrick foi o Sétimo Selo de Bergman: “The thirty-two-year-old Kubrick, winning his first acclaim as a filmmaker, had written to Ingmar Bergman telling him how his “vision of life has moved me deeply, more deeply than I have ever been moved by any films.” 2001 contained a tribute to The Seventh Seal: astronaut Frank Poole plays chess with the computer that will kill him, just as the knight in The Seventh Seal plays chess with Death.”
Esta música.
Este tweet. Vocês quando recebem newsletters minhas 🙂↔️
You’re Being Alienated From Your Own Attention. Este artigo do The Atlantic analisa a forma como a atenção humana se tornou um bem valioso no paradigma contemporâneo, algo que pode ser conquistado, vendido e trocado. Em vez de ser um recurso pessoal e intencional, passou a ser sistematicamente fragmentado e explorado por plataformas digitais, publicidade e algoritmos que competem entre si. O resultado é uma crescente sensação de alienação, onde temos cada vez menos controlo sobre onde e como direcionamos a nossa atenção. “Every single aspect of human life is being reoriented around the pursuit of attention, and the constant pursuit of others’ attention is no longer just for professionals like myself. Social and economic conditions have been rearranged around the pursuit of attention, a transformation as profound as the dawn of industrial capitalism and the creation of wage labor as the central form of human toil … What had previously been regarded as human effort was converted into a commodity.”
A newsletter da Jessica Defino, que gosto sempre de consultar. “This urge to replace what is living and inevitable (pores, pigmentation, wrinkles, blemishes) with what is inanimate and ingestible (flour, frosting) isn’t so surprising, really. It’s in line with decades of unrealistic beauty ideals, which exist to service “a secular society” that worships “ever-increasing industrial productivity,” Susan Sontag writes in On Women. The philosopher describes a sort of self-objectification that isn’t concerned with appealing to men, but rather, with deifying and even identifying with products. Food Face, then, is buying products to become a product. It’s consuming to be consumable.”
E, ainda na seguimento do tema anterior, ou seja, desta relação cada vez mais promíscua entre beleza, marketing e comida – o conceito de beleza enquanto produto a ser consumido - outro artigo que achei interessante, desta vez sobre perfumes: The Latest Trend in Perfume? Smelling Like Food.
Eu 🤝 estes vídeo no YouTube. E deixo também o artigo que espoletou a criação do vídeo. Já tinha lido e achei interessante, I mean, estas rotinas tão excessivas não me parecem assim tão saudáveis. Is anyone having sex after their 12-step night time skincare routine?
Ganhei um passatempo! É coisa rara na minha vida, mas participei numa espécie de sorteio literário promovido pela Dirt e acabei por ser presenteada com estas novas edições da Picador dos romances do Roberto Bolaño. Uff, feeling lucky.
A Postwar Cultural History of Cuteness in Japan. Coisas aleatórias que vou lendo por aqui, porque desde que me cruzei com este artigo, o tema não me sai da cabeça: Why everyone is obsessed with toys right now? “But why exactly are so many of us spending our hard-earned cash on toys right now? And why have cute cartoon characters suddenly become fashion staples? For some, it’s about returning to simpler times – childhood, basically. In a world that feels vastly out of control and is often very scary, it’s nice to have something that makes you smile and feel less alone.”
Tenho acompanhado o desastre que tem sido a reta final da campanha do filme Emilia Pérez, que conta com o maior número de nomeações para os Óscares este ano. O trailer, por si só, foi suficiente para me fazer achar o filme muito mau, forçado e até pretensioso. Sei que é um julgamento pela capa, mas depois de ver a cena que partilho abaixo, não quero mesmo ver mais nada. Só mesmo acompanhar os próximos desenvolvimentos. A situação acaba por ser irónica, dado que o filme caiu nas graças da Academia, evidentemente, pelo tema e pela representação trans. O interessante?
não é a qualidade do filme que decide o seu favoritismo;
é uma série de tweets que lhe retira uma possível vitória;
mas e o filme? Ah, isso não interessa nada.
Confirma-se que este é o meu Substack preferido. Grande texto, Marta. (E adoro o facto de a nota de despedida fazer parte da crónica.)