fazer dieta
é complicado, mas eu tento.
Se é verdade quando nos dizem que somos o que comemos, o que seremos então quando nos dedicamos a alimentar a mente e o espírito? Hoje falo de uma dieta que só não supera a mediterrânica porque não envolve doses generosas de azeite nem foi reconhecida pela UNESCO. Ainda assim, arrisco dizer que devia. Os seus benefícios são semelhantes: longevidade, resistência e uma maior imunidade contra algumas doenças crónicas do nosso tempo como doomscrolling, being chronically online, brain rot, anti-intellectualism, looksmaxxing, main character syndrome, delusion ou slop.
Refiro-me, claro, a uma dieta cultural. Mas calma. Antes que alguém encontre nestas palavras migalhas de presunção, elitismo ou disciplina tóxica travestida de erudição, vamos aos livros e limpamos o prato.
É comum pensarmos na palavra “dieta” como um conjunto de restrições a cumprir, entre elas a contagem de calorias, mas os gregos, para variar, tinham outra ideia. Na sua origem, “dieta” vem de diaita (δίαιτα), um termo mais amplo e generoso: é um modo de vida, a forma como cada um decide governar os seus dias. Longe de se limitar à alimentação, a dieta era entendida como um conceito holístico, um plano de equilíbrio prescrito pelos médicos, que incluía o exercício físico, o descanso, as relações sociais e até a contemplação filosófica.
À luz destas ideias, uma dieta cultural não se define tanto como uma lista de proibições ou hábitos aos quais aspirar, mas como desenvolvimento de uma arquitectura de pensamento e atenção. É, no fundo, o espaço que escolhemos habitar. São os livros, filmes, músicas, imagens, conversas e detritos digitais que vamos acumulando e que criam padrões que revelam mais do que, muitas vezes, gostaríamos de admitir. Moldam a forma como vemos e interpretamos o mundo. Nesse sentido, tudo o que consumimos hoje tem o potencial para se tornar na matéria-prima dos nossos pensamentos de amanhã. Podemos achar que não é assim tão profundo, mas a mente trabalha de forma misteriosa e o subconsciente está quase sempre um passo à frente.
A dieta cultural que seguimos não é apenas um reflexo da nossa personalidade, é também um dos seus motores, criando gostos, opiniões e pontos de vista. Até aqui, nada de novo. O problema surge quando, numa era de acesso praticamente ilimitado à informação e à cultura, se torna cada vez mais difícil encontrar o nosso lugar no mundo. Uma dieta que nos deixe saciados. O excesso de conteúdos é tal que, em vez de sentirmos o nosso cérebro a expandir, acabamos por sentir o oposto, um tipo de atrofia silenciosa que produz aborrecimento e anestesia. Sentimo-nos perdidos, incapazes de regressar às paredes interiores da nossa mente, ao quarto que antes decorávamos com cuidado e intenção, feito à nossa medida, e não à medida daquilo que os outros esperavam que fosse.
Há uns meses, cruzei-me com o projecto Teenagers in Their Bedrooms de Adrienne Salinger, que registou os quartos de vários adolescentes ao longo das décadas de 80 e 90. Por alguma razão, as divisões ficaram gravadas na minha memória como cápsulas de um tempo passado, semelhantes entre si, mas marcadas por uma identidade muito própria. Ao observá-las, é possível identificarmos inclinações, valores, referências e gostos; captamos as personalidades destes adolescentes através dos objectos escolhidos e da sua disposição.
Tal como eles, antigamente tínhamos nos nossos quartos pósteres rasgados, colagens imperfeitas, trabalhos manuais duvidosos colados de forma tosca e irregular; uma pilha de livros ou folhas soltas, autocolantes aleatórios, DVDs e CDs empilhados segundo os nossos critérios. Era uma confusão, mas era uma confusão pessoal. Todas as pequenas coisas que nos envolviam criavam um universo que absorvíamos e nos ajudava a formar um gosto único, um tanto rebelde e especial. Era um espaço sagrado, um lugar onde tudo o que éramos estava, de alguma forma, ali.



Tudo isto me interessa na medida em que me interessa associar o espaço físico à ideia de um “quarto mental”, um lugar diverso, recheado, por vezes caótico, mas ainda assim palpável. Um organismo vivo, alimentado pelo instinto, pela curiosidade e por um fascínio privado que não precisa de validação algorítmica. Hoje, tenho a sensação de que os nossos quartos mentais estão a ser esvaziados sem explicação, não para serem habitados, mas para serem exibidos. E isso, suponho, tem consequências duradouras na qualidade nutritiva do papel de parede que nos dá forma, como se as coisas mais importantes da nossa vida se tivessem tornado secundárias e descartáveis. Mas não são. Não são!
Voltando à dieta, estou convencida de que a cultura funciona da mesma maneira que a nutrição. Algumas das coisas que consumimos são verdadeiramente nutritivas e levam tempo a ser digeridas, aliás, precisam de tempo para crescerem dentro de nós: um filme que só compreendemos semanas, meses ou anos depois. Um álbum que só à terceira ou à quarta vez se começa a revelar. Um quadro que ganha ainda mais expressão depois de conhecermos o contexto, a técnica ou a vida do seu criador. Outras são autênticos torrões de açúcar: viciantes, mas pobres. Reels ou tweets que vemos em catadupa e com os quais nos rimos durante uns breves segundos antes de seguirem o caminho natural de partilha em corrente com os amigos mais próximos. E o loop açucarado continua! Há ainda as que funcionam como medicina e aquelas que, embora deliciosas, se tornam venenosas. E depois existem os equivalentes culturais à comida bege de um hospital, tecnicamente consumíveis, mas espiritualmente neutras.
Viver em 2025 e ter acesso a esta quantidade excessiva de informação deveria parecer entusiasmante como se estivéssemos a entrar na maior biblioteca do mundo, mas a experiência assemelha-se cada vez mais com uma ida ao hipermercado: luzes brancas e agressivas, estímulos constantes, pessoas a tentarem vender-me coisas que não me fazem falta nenhuma, mas que às vezes compro de forma precipitada porque não pensei antes de continuar o scroll, uma sensação ilusória de escolha onde tudo é atractivo e nada nos faz sentir vivos. No fim, saímos com os mesmos produtos que todos levam no braço, com uma despesa maior do que aquela que esperávamos e com a sensação de que esses produtos nem sequer nos definem. Vão para casa por engano. O gosto, outrora idiossincrático, começa a parecer-se mais com um moodboard do Pinterest do que connosco.
Repito. A minha ideia de gosto não tem nada a ver com alta ou baixa cultura, muito menos com o posicionamento presunçoso de quem desdenha o mainstream. Esse nunca foi o meu ponto de partida, mas sinto que o gosto das pessoas está a ficar muito sem graça, blasé, lá está, pouco nutritivo. E toda a gente sabe o que acontece quando seguimos uma dieta pobre em nutrientes e vitaminas. Ficamos cansados, letárgicos, hiper-sensíveis, facilmente irritáveis. No limite, colapsamos ou vamos sobrevivendo à base de ultra processados.
Estamos a tornar-nos todos aborrecidos, não temos opiniões interessantes, concordamos com quem fala mais alto ou se veste de forma mais bonita ou tem mais seguidores, achando que isso é sinal de qualidade. NÃOOOOOO. Temos de reivindicar aquilo que nos pertence: o nosso cérebro, as nossas ideias, as nossas convicções e críticas em relação a tudo aquilo que nos rodeia.

Num evento dos BAFTA, em 2012, o realizador Charlie Kaufman descreveu esta sensação com precisão. Estamos esfomeados, mas não o reconhecemos porque nos alimentam com lixo industrial produzido nas mesmas fábricas onde se fazem Pop-Tarts e iPads. O packaging é irresistível, os sabores são refinados em laboratório e as texturas são perfeitas. O que é que acontece quando seguimos uma dieta como estas durante longos períodos de tempo?
A verdade é que me sinto muito mais frágil, deprimida e distante de mim quando consumo demasiado deste conteúdo industrial, brilhante e vazio. A espessura do pensamento fica mais fina, quase invisível. Perco massa emocional, como se estivesse deitada numa maca durante semanas, sem poder pensar. Uma espécie de anemia psíquica, com os nutrientes que me permitem sentir profundamente ou imaginar de forma independente banidos da dieta.
Não posso ser a única. Estamos cada vez mais sobre-estimulados e, ao mesmo tempo, subnutridos. E, como diz Kaufman, muitas vezes nem reconhecemos que temos fome. É difícil perceber que estamos esfomeados quando nos servem sobremesa a toda a hora.
O meu ponto é este. Se a cultura é o ar que respiramos, então devíamos todos prestar mais atenção à sua composição. O que consumimos, seja em termos de cinema, música ou livros tem um impacto profundo na maneira como crescemos. Há filmes que nos salvam, álbuns aos quais nos agarramos como se fossem a chave para entender o nosso próprio sofrimento ou êxtase; quadros que nos fazem chorar e livros que, tal como certos alimentos, alteram a composição química do nosso cérebro, tornando-o mais complexo, mais denso e cheio de camadas que, de outra forma, não poderíamos ter absorvido. A cultura, neste sentido, não funciona apenas como um espelho da sociedade, é uma fonte contínua de inspiração.
É importante fazermos a questão: o que é que é nutritivo para a nossa mente? Talvez algo que estimule a curiosidade, o entusiasmo ou a criatividade. Algo que nos inspire. Ou, no mínimo, que nos informe sem sentirmos efeitos secundários negativos. No outro extremo do espectro, está o conteúdo processado e cheio de químicos. Uma boa dieta cultural deve incluir tanto o que nos eleva quanto o que nos entretém. Até a banalidade pode ser nutritiva, digo eu que divido a minha atenção entre o Twitter, o YouTube e o Instagram à procura de dopamina de rápida absorção. Mas devemos fazer os possíveis para distinguir o açúcar de uma peça de fruta (o filme e o que nos fez sentir) do açúcar de um pacote de gomas (tweets sobre o filme).
Às vezes acho que a razão de estarmos todos tão zangados, mimados e prontos para entrar em guerras é porque estamos todos espiritualmente esfomeados. Pessoas esfomeadas não se comportam bem. Comparam, lutam por migalhas, confundem o vazio com a ameaça. E num mundo onde muito do que vemos é criado com base numa estratégia de marketing, começamos a tratar-nos uns aos outros como marcas e produtos. Falamos e argumentamos através de frases feitas, aparecemos para agradar e evitamos o atrito a todo o custo, reconhecemos o valor de mercado de cada um, mas não somos capazes de perceber o que está para lá da etiqueta. Conhecemos o preço de tudo e o valor de nada.
Somos ensinados a perseguir o sucesso, a exibir as nossas vidas, a hipotecar as nossas ideias, a catalogar os nossos medos, como se a necessidade ilusória de conquistas e reconhecimento pudesse algum dia preencher o vazio cada vez maior que sentimos cá dentro. Nada preenche o vazio a não ser a honestidade, o tipo de honestidade que não é lucrativa, que pode até ser humilhante e dura, mas que é genuína.
Assim, uma boa dieta cultural exige atenção ao mundo, ao que nos rodeia e a nós próprios. Exige saber escolher o que nos alimenta e perceber quando temos fome. Distinguir o que nos aproxima de quem somos daquilo que nos afasta, procurar actividades e experiências que nos preencham em vez de nos adormecerem, dar valor ao prazer, ao tédio e à confusão.
A internet adora dar nomes a coisas que sempre existiram, não fosse essa uma das formas mais rápidas de fazer dinheiro. No outro dia, descobri o conceito de dopamine menu. É uma lista de actividades, dividida em entradas, pratos principais e sobremesas, que nos fazem sentir melhor e mais alegres durante o dia. Bonito e queridinho, mas irritante quando paramos para pensar que, em algum desses templates em tons pastel, estão actividades como “ouvir música”, “beber água”, “ligar a um amigo” ou “acender uma vela”. Estão a tentar vender-me um menu de felicidade, como se fosse algo muito útil e saudável, quando, na verdade, parece mais um comportamento infantil e meio pateta.
Na prática, parece que estamos a abdicar da nossa capacidade de saber o que nos faz felizes. Sei que a origem do conceito está associada a pessoas com hiperactividade e ADHD, mas pessoalmente, este tipo de fórmulas não resulta com a minha cabeça. Não gosto de listas, não gosto de ter pontos a seguir, sobretudo no que toca a algo tão livre de regras como o pensamento. Faço o que me faz sentir viva, quando tenho vontade e energia. O ponto é não haver ponto! A dopamina real não se importa com métricas nem templates, é caótica e imprevisível. Não acreditem no contrário.
O que quero mesmo dizer, se calhar, é que a minha dieta cultural se resume a ser curiosa. É o melhor antídoto contra as toxinas modernas e, se tivesse de fazer um menu de dopamina, seria algo como isto: curiosidade ao pequeno-almoço, curiosidade ao almoço e jantar, curiosidade à sobremesa. Uma dieta monótona, mas eficaz.
Pode parecer simples e redutor, quase cliché, mas a curiosidade é o meu superalimento favorito (açaí could neveeeeer). Empurra-me para perguntas que não têm resposta, para conversas que não acabam, para interesses que duram o tempo que durarem até se tornarem mais um póster colado de forma tosca nas paredes do meu quarto mental. Não resolve tudo, não é charmoso nem estético. Não cabe em templates e reels. É o que é e dá-me as pistas necessárias para descobrir quem sou e o que quero. E, só com isso, eu fico feliz.
Estes álbuns e músicas. Deixo os links para algumas das favoritas, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
Esta apresentação!! 🌀🤯 social media signals 2025_v5.
Estes filmes.
Um artigo curioso, Self-care or self-erasure? Welcome to the age of bio-optimisation.
Um vídeo de um dos meus canais favoritos no Youtube.
Um artigo pertinente, What to Do When Your Friends Disappoint You.
Um vídeo de sobremesas vegan, 5 Cozy Desserts ANYONE can make.
Mais um episódio do podcast Tasteland.
Este tweet.
E este.
nota: já não tinha espaço para mais embedded links e imagens nas recomendações 🥲







Concordo plenamente! Mais curiosidade por favor!! ☺️
🎯🎯🎯 menos é mais e estamos todos a precisar de nos recordar disso. gostei muito e quero-te sempre na minha dieta 🤓