No fim de semana passado fui a Seia celebrar os 90 anos da minha avó. Na verdade, ela fez anos no dia 25, o dia do Eusébio, como gostamos de relembrar, mas se há coisa que a minha família é perita em fazer é em não dar muita atenção à regra, ou melhor, reconhecê-la e dar-lhe a volta sempre que seja necessário.
Afinal, não há nada como replicar o dia de uma pessoa que nos diz muito, comprar um segundo bolo, cantar-lhe os parabéns mais cinco vezes e prolongar a festa até onde der.
Na quinta-feira à noite chegava a Lisboa. Sexta-feira era dia de nova viagem. Entre planos e malas, estações de serviço e portagens, lá nos fizemos ao destino. A logística de dias como estes nem sempre é fácil, o pré-cansaço que se abate sobre o corpo antes mesmo de entrar num autocarro rumo à capital deixa-me ligeiramente ansiosa, mas já aprendi que basta colocar os pés dentro de casa e sentir os graus quase negativos no ar para que essa sensação se evapore do sistema.
Curiosamente, nos últimos tempos, custa-me mais quando tenho de sair de Faro, como se ficasse com uma súbita e ligeira saudade da casa, da rotina, da sensação de conforto, do meu canto e das minhas coisas. Despedir-me do André na estação já é algo que evito fazer, digo-lhe que não quero que ele me leve lá. Ponho-me a caminho sozinha. É mais fácil de gerir, penso eu.
Dizê-lo assim pode até parecer um quanto dramático, mas talvez seja um bom sinal, aquele que nos diz que o carinho e o amor que temos aos espaços e às pessoas não é em vão, que há magia nas despedidas e nos reencontros.
Quando era pequena, lembro-me de olhar para a minha avó como uma pessoa misteriosa, não só porque sempre me pareceu muito recatada e silenciosa, mas também porque sempre guardou para si todas as grandes verdades e inquietações da vida.
Na história da minha família todas as mulheres aparecem como grandes pilares, enormes para a real altura que têm. A avó Inocência não é exceção, aliás, as minhas duas avós representam a génese daquilo que é a minha percepção de um grande sustento emocional. O como reside incógnito, mas mais claro à medida que também eu me dou às grandes questões do universo. Há momentos em que me revejo em todas elas, nas avós e na mãe, nas irmãs e nas tias.
Além de reservada, a avó Ino, como é conhecida, é muito astuta; sabe o que dizer e o que ouvir, tal como sabe o que deve ser ignorado e não pronunciado. A surpresa para mim foi sempre pensar em como é que, no meio de tanto engenho e algum sofrimento, esta mulher se mantinha vigorosamente amorosa, ternurenta e sensível com os seus.
Que exercício superior fizeram as mulheres da minha vida?
Mesmo nos piores momentos, na saída forçada do país onde nasceu, em Angola, na perda do meu avô, no infortúnio do filho e na distância da filha, sempre se manteve fiel aos princípios da sensatez, pronta para nos mostrar que o amor e a renúncia a certas situações e sentimentos menos bons nos traria mais paz. Sei que a oração é, para uma pessoa religiosa como ela, um grande catalisador emocional, a libertação de um peso que passa para o lado hipotético, o lado da fé. Sei também que os momentos mais felizes são guardados num cofre, a sete chaves, entre a máquina de costura e as gavetas cheias de cremes e camisolas de natais passados, ainda por estrear. Mas fica ainda muita coisa por saber, sabem?
As avós são pessoas misteriosas, criaturas mágicas. As minhas pelo menos são. São pequeninos pontos de ligação, exemplos a seguir; fazem o possível e o impossível, pratos vegan improvisados, panelas de sopa pela manhã, bainhas de calças pelo fim do dia; continuam curiosas, irremediáveis, teimosas, com um grande sentido de humor. Com alguma lamentação, muitas asneiras e rebeldia à mistura, é certo, mas não há ninguém por esta altura que as condene por quererem continuar a fazer magia. O que seria, e ai de quem as tente demover! A razão está decididamente do lado delas, o que torna tudo mais complicado para os adultos que as querem proteger.
Por incrível que pareça, estou mais perto desta situação do que penso. Quando chegámos a casa e abracei o meu pai, reparei que o cabelo dele começou finalmente a ficar grisalho. Com quase 70 anos de vaidade no corpo, sempre achámos que o segredo capilar do Sr. Rui residia numa tinta para o seu forte cabelo escuro, usada às escondidas de todos. Em brincadeira, passámos a vê-lo como uma pessoa que nunca envelheceria e todos nós sabemos que as brincadeiras e a idade têm os seus limites.
Ao olhar para os seus cabelinhos mais acinzentados e uma certa surpresa quando confrontado com um: “Papá, estás a ficar com o cabelo grisalho!”, fiquei a pensar no quão próxima estarei de assumir, em conjunto com os meus irmãos, a função que os meus pais ainda assumem.
No Natal, reparei que a minha mãe está mais cansada, que os seus ossos sempre foram chatos, mas que a artrite não dá tréguas; mesmo assim continua: fez mil e uma sobremesas, cozinhou, arrumou e voltou a cozinhar. Parou muito pouco, mas acho que nunca a vi de outra maneira neste dias, é sempre a última a sentar-se à mesa. Agora não a vejo só mais cansada, como muito mais sensível, ou pelo menos com maior capacidade para se mostrar frágil. Será o tempo a dar-lhe sinais de que é altura de se mostrar como a mãe que já fez tudo o que podia e que agora precisa mais de nós? Hoje diz-nos que tem saudades. Hoje começamos a descobrir-lhe traços de personalidade que eram inacessíveis quando éramos mais novos.
Não sei se alguma vez vou estar preparada para isto, mas sem dar conta dou por mim a pensar em coisas como a velhice dos meus pais, a impossibilidade para fazerem coisas que até agora sempre fizeram, a disponibilidade para irem ao encontro dos filhos, a capacidade que tinham para resolver problemas que hoje somos nós a tratar. Gradualmente, as cadeiras vão rodando e os nossos papéis vão-se invertendo. É curioso e é algo que me assusta desde a altura em que saí de casa pela primeira vez e vim viver para o Algarve. Esta distância é assumida, mas saber que há momentos que devem ser marcados pela presença e não pela ausência faz com que tenha cada vez mais vontade de celebrar dias fora da data.
Na semana passada a avó viu-se obrigada a remexer no cofre da felicidade; as memórias eram demasiadas, transbordavam e isso emocionou-me muito. Foi das primeiras vezes em que a despedida das netas não teve direito a lágrimas, mas a um adeus feliz, de quem está em paz, realizada. Quem diria que num fim-de-semana relâmpago poderíamos ter este efeito na história de uma mulher que já conta com 90 anos de vida?
Por aqui, aprendi, fazemos de tudo por amor, sempre fizemos de tudo pela família. Sei disso hoje porque me vejo a cada dia mais parecida com as mulheres da minha vida, a compreender-lhes o silêncio e o sofrimento, o sacrifício e o carinho incondicional. Sei disso porque vejo nos meus pais a sombra das avós e o reflexo do que vou ser.
No domingo voltava a Faro, com paragem em Lisboa. Mais uma viagem, novos kms, mas com a sensação de que por mais que me esforce nunca vou ser capaz de revelar o mistério de criaturas tão mágicas como as minhas avós.
São 90 que se encaminham para o dia final e suspeito que só mesmo aí, ao km 0, quando as duas partirem é que me aproximarei do segredo que há-de ficar sempre por relevar.
A música que a minha avó cantou em loop no fim-de-semana.
Bilhetes para The Weeknd com o meu parceiro do crime, Marmelo! 🕺
Sim!
O terceiro episódio de The Last of Us. Foi aquele em que mais chorei (não é difícil) e acho mesmo que vai ser daquelas obras que vai conseguir existir por si, sem nunca desrespeitar o jogo. Até agora está inacreditável. Nunca mais vou olhar para morangos da mesma maneira. Vejam, vejam!
Papo-seco de Sameice, inigualável. Tive de comer dois para ficar saciada.
Este tweet que me levou ao seguinte artigo, Bill Nighy, Master of Misdirection. Love some gossip, especialmente se envolver personagens misteriosas.
Muito frio em Sameice ❄️
Are You the Same Person You Used to Be? Um artigo que fala sobre um tema no qual penso muitas vezes. As memórias de infância e a forma como a nossa identidade vai evoluindo até sermos diferentes de quem achávamos ser.
In the shallow world of BookTok, being ‘a reader’ is more important than actually reading: “At the end of 2022, the bestselling author Stephanie Danler (Sweetbitter, Stray) wrote about trying to traverse BookTok as an author. Her experience was somewhat fraught. She wrote that TikTok is “not a social media app but an entertainment app. On it, you can’t just show a book by Clarice Lispector. The successful accounts performed being a ‘woman who reads Clarice Lispector.’” Danler also goes on to make the claim that “being visible on these apps is antithetical to the act of writing.” I find it difficult to disagree with Danler’s summation of BookTok. There is an uncanny falseness behind it all, a showy nothingness that only approximates bibliophilia. Who doesn’t want to be seen as literary? Being perceived as having read a lot of books warrants a fair share of cultural capital. If you can fake it, then why not?”
A última coisa da semana, mas não menos importante. Há uns dias estava no café com o pessoal da KOBU e tinha pedido 2x torradas. Ora, na minha ótica, 2x torradas não são 4 fatias de pão, mas, no que ao vocabulário de café diz respeito, parece que são. Resultado: paguei quase cinco paus por torradas e café. Nunca mais me apanham nestas teias diabólicas. Não, não! Para tornar tudo ainda mais interessante, o Gonçalo ilustrou o momento. É um verdadeiro artista, mesmo. Sigam-no!
Adeus amigos!
Tenham uma boa semana,
M.